O ídolo e o preenchimento do vazio

2 mar


O Brasil está carente de ídolos! Isso é bom ou ruim? Me refiro aquela figura que abraça toda uma nação e é admirado por ela. Aquele que representa em uma determinada época o imaginário social, seja de adultos ou crianças, homens ou mulheres. O ídolo é a figura de adoração, onde projetamos expectativas e desejos colocando sobre ela a capacidade de realização.

Quando busco na memória ídolos de grande massa e capacidade de comoção social no Brasil, me aparecem logo de cara as figuras de Pelé e Ayrton Senna, dois esportistas e duas pessoas que fizeram, em épocas diferentes, muitos sentirem alegria, orgulho, admiração, patriotismo, esperança e união.

Não é a toa que dois atletas tenham se tornado mitos. O esporte traz uma herança em nosso imaginário coletivo desde a Grécia antiga, quando era uma forma de cultuar os deuses e celebrar a paz entre as cidades vizinhas. Os atletas eram cultuados como verdadeiros heróis e o vencedor das competições, acreditavam, se aproximava mais dos deuses.

Pelé, até hoje conhecido no mundo inteiro como rei do futebol, tornou-se um ícone não só desse esporte como símbolo do Brasil e em plena época de repressão militar fez com que milhares de brasileiro vestissem a verde e amarela da seleção canarinho com orgulho. Existem as controversas em torno de uma manipulação de sua figura como garoto propaganda da ditadura militar do Brasil pelo mundo. Uma tentativa de cegar a nação em torno do que acontecia nos porões das delegacias e amenizar as críticas sobre o regime totalitário. Caso tenham realmente se aproveitado de seu talento, isso não vem ao caso agora. O que importa é que de alguma maneira ele simbolizou para muita gente o espírito de união, trouxe esperança e orgulho para um país que vivia em estado de tensão.

Ayrton Senna era um piloto em tempos de democracia. Porém filho de uma época em que o Brasil vivia um momento de fragilidade econômica, desigualdade social e muito, mas muito pessimismo e falta de identificação com o país. Na década de noventa era difícil encontrar um cidadão que se intitulasse brasileiro ou tivesse orgulho de sua bandeira. No máximo diziam que eram, paulistas, cariocas, pernambucanos etc. Era na figura de Senna levantando a bandeira brasileiras aos domingo e tomando banho de espumante que o povo brasileiro encontrava seu orgulho. Além de ser o melhor piloto de Formula 1 do mundo, Ayrton era também admirado por suas qualidades pessoais. Não se envolvia em escândalos, era honesto e generoso.

Na minha opinião, estamos em dieta de um grande ídolo nacional desde então. No entanto, o Brasil vem se tornando, cada vez mais, motivo de orgulho para os seus cidadãos. Ainda tem muito o que melhorar? sim! Mas vale lembrar que, desde que os europeus impuseram seu estilo de sociedade e vida ao nosso país foram, apenas, pouco mais de 500 anos. E agora que o país engrenou não temos um ícone. A seleção de futebol, o grande orgulho do país, motivo de união entre todas as raças e todas as classes, aquela que fazia o brasileiro se sentir como uma verdadeira nação está em crise.

Será que o nascimento do ídolo, a constituição de um mito depende de um contexto de mal estar social? Começo a pensar que sim. Me parece que pessoas precisam estar desacreditadas para projetar em alguém aquilo que elas não possuem nelas mesmas e esperar que, de alguma forma, alguém realize algo por elas. Quando o ser humano pergunta para sí própria: Quem sou eu? E encontra na resposta um vazio, a figura do ídolo vem mostrar aquilo que a gente gostaria de ser. É assim que acontece com as religiões.

Que essa pergunta possa ser respondida por mais brasileiros, cada vez mais. E que a gente tenha não um ídolo em quem se apoiar, mas, vários ídolos a quem possamos admirar. Pessoas de caráter, honestas, felizes e realizadas no esporte, em casa e principalmente na figura de nossos governantes.

Falando mais sobre Kevin

8 fev

Amor e desejo são elementos que promovem, desde muito cedo, uma vida mentalmente saudável. A habilidade de amar, criar vínculos e se abastecer de sentimentos é constituída nos primórdios de nossas relações, desde a história geracional de nossa família, passando pelo desejo real dos pais em gerar ou criar um filho, até o ambiente em que se é criado.

São essas sucessões de fatos, vínculos, desejos e relações que, de acordo com as diversas linhas de estudos da psiquê humana, faltam aos psicopatas. Todas concordam com a teoria de que não existe um fato isolado capaz de tornar a pessoa inapta de sentir emoções e sentimento de culpa. Muito menos uma formula para impedir que eles existam. As relações humanas e a estrutura psíquica dos indivíduos são por demais complexas para que se chegue a exatidão. Embora, na maioria das vezes, as mães são apontadas como as principais responsáveis.

No filme: Precisamos Falar Sobre Kevin, adaptação do ficcional livro de Lionel Shriver de mesmo nome,a mãe de Kevin, muito bem interpretada por Tilda Swinton sofre todas as agruras pessoais e sociais pelo fato de ser mãe de um psicopata que acaba cometendo o assassinato de 11 pessoas.

Eva, o nome da personagem, era escritora e roteiros turísticos para jovens. Passava a maior parte do tempo conhecendo vários países e levava uma vida livre e alegre em NY. No auge de sua carreira e de seu relacionamento amorosos ela acaba engravidando acidentalmente. Caso fosse um menino o pai escolheria o primeiro nome e levaria o sobrenome da mãe, Katchadourian, de origem armênio vindo de um povo que foi cruelmente massacrado.

Kevin já carregava o nome com peso histórico de violência, uma mãe que não o desejou e nem mesmo queria ser mãe. Depois que o filho nasceu, ela claramente demonstra que sua vida tinha mudado para pior e, aborrecida, deixa isso transparecer para Kevin. Diante dessa configuração, o pai também tem um papel importante em sua própria ausência, não física, mas de consciência em relação ao filho e ao que acontecia com ele. Kevin não tinha amigos, tinha atitudes estranhas em casa e os professores comentavam sobre seu comportamento.

O garoto alimentou o ódio pela mãe que nunca o amou, nem tampouco o desejava. O psicopata perde parte de sí quando não se significa a partir do amor primário, aquele amor vindo da fantasia da mãe sobre ele, do desejo de gerar e criar essa criança ainda quando eles são partes de uma unidade. Se kevin não foi amado ele não tinha capacidade de constituir habilidade de amar.

Por outro lado, Kevin parece ter tido um pai que o desejou e que o amou. Parece, porque se de fato ele o tivesse amado verdadeiramente emocionalmente, não teria se ausentado e permanecido tanto tempo cego em relação ao filho. Ele contribuiu para a constituição de um cenário familiar, mas não atuou dentro dele.
Finalmente enveredamos para o lado social e ambiental que proporcionaram a constituição de sua estrutura perversa. A instituição familiar tradicional ainda vive seus momentos de modelo regente da sociedade, ou seja, é muito mais “correto” e “normal” que uma família se estruture na figura de um homem (pai) e uma mulher (mãe), mesmo que entre eles não haja cumplicidade e amor e, principalmente, capacidade emocinal e desejo de criar um filho.

A sociedade ainda coage à mulher a maternidade, mesmo que muitas, hoje em dia, consigam se livrar da culpa e das cobranças por não se tornarem mãe. Além da palavra mãe ainda carregar, tomando as palavras de Elizabeth Badinter, o mito do amor materno. Quando se dizia que o amor de mãe seria um sentimento inato e incondicional, e é para algumas, mas não serve de regras para todas. Hoje ainda é tabu falar que é possível uma mãe sentir raiva de um filho ou mesmo preterir um a outro.

Essa relação entre pais e filhos, crianças monstros e abandonos não é uma novidade contemporânea. A tragédia de Édipo, o romance O Perfume, os filmes a Profecia e o Bebê de Rosemary são exemplos antigos e mais recentes, talvez não tão explícitos como em Precisamos falar sobre Kevin, mas que tratam dessa ambigüidade que é possível existir em uma relação tão complexa e muitas vezes simbióticas entre pais e filhos. E entre consciência ética e moral em uma sociedade constituída por diversas personalidades.

Unidos como um, divididos por zero

27 jan

As redes sociais já são o grande palco dos principais protagonistas de gritos, manifestos e ações de repúdio que, antes, pertenciam as ruas e aos cartazes de papelão. Não que tenham sido completamente abandonados. As churrascadas em São Paulo pelo metrô de Higienóplolis e direitos humanos na cracolândia, as ocupações em universidades e protestos dos estudantes pelo aumento das passagens de ônibus em Recife, estão aí como prova. Porém, todos assuntos tipo “trending topics” nas principais redes.

Uma coisa não altera ou diminui a outra, pelo contrário, parece que agrega, e como agrega. Quem tem medo do Twitter e do Facebook? Os fatos ali dentro vão tomando uma proporção enorme a partir do “ boca a boca”. Já houve casos de punição real e “apedrejamento em mural público”. Antes o que se lia nos jornais se comentava nas ruas, agora, o que se vê na internet se comenta nos jornais.

Já houveram inúmeras discussões sobre se a internet unia ou separava as pessoas e não se chega a lugar nenhum. A questão é: como a internet pode unir e como ela pode separar as pessoas? Por que união e separação já existiam muito antes daquele botão “adicionar aos amigos” pensar em ser programado.

Querem exemplo de união maior do que um imenso grupo de pessoas logadas com o propósito de derrubar o site de um dos maiores símbolos de segurança e inteligência do mundo? Os Anonymous, juntos, conseguiram fazer isso com o FBI. O grupo nem se define, na verdade ele nem é. Não existe um líder nem regras. Anonymous, como diz a própria palavra traduzida do inglês, anônimos, pode ser qualquer um. Basta querer participar de uma causa.

Em grande parte, essas manifestações, não se resumem a ações virtuais onde um bando de nerds ficam bombardeando redes e websites, muitas vezes eles nem são tão nerds. Isso pode surgir na internet como idéia e terminar num ato em si. Todas essas manifestações que mencionei no primeiro parágrafo tiveram início assim, esse é o trunfo das redes; conectar pessoas que não precisam, necessariamente, se conhecer pessoalmente.

Tudo isso se resume ao título escolhido para esse texto, retirado do manifesto dos anonymous que, particularmente, é uma frase inquietante e de certa forma esperançosa, mesmo que soe utópica. Unidos por uma causa e divididos por nada. Para uma geração que, como bem disse Matheus Pichonelli em sua coluna na Carta Capital: “nascida em meados dos anos 80 e criada nos 90, foi o maior baby boom de bundões que o Brasil já testemunhou; crescemos com medo da violência, das doenças sexualmente transmissíveis e do outro (do favelado ao muçulmano) e, por este motivo, decidimos nos enclausurar em bolsões de segurança (o shopping, a escola particular e os condomínios fechados) para poder nascer e morrer em paz, sem grandes objetivos na vida a não ser aceitá-la”.

Parece que alguma coisa começa a acontecer, nem que seja ao menos um ensaio. Para finalizar, o que me preocupa, não é nem se a internet une ou separa as pessoas, física ou virtualmente falando. O que me preocupa são os distanciamentos. Preocupados com o que está acontecendo com pessoas a quilômetros de distancia, engajados em doações, em proteger cracoleiros e aflingir os corações com a probreza e sofrimentos distantes esquecemos de, apenas, olhar para o nosso lado.

Esse foi um grande erro da geração de bundões, ter que se proteger do próprio erro, do próprio descaso, da própria omissão. Quantas serão as pessoas que correm até as ruas e redes sociais exigindo direitos humanos quando, dentro da própria casa, paga apenas um salário mínimo injusto quando poderia pagar um pouco mais, quando poderia pagar um colégio particular para o filho daquela sua funcionária que todos os dias cuida da sua casa com zelo, dar uma chance a essa criança. A mesma coisa com funcionários de sua empresa, aquele que você acha que merece, que tem algum potencial. Devem existir alguns.

Um ato de solidariedade com quem está ao seu lado, pode vir, mesmo que a longo prazo, a diminuir o número de pessoas pobres e ocupantes da cracolândia, pode diminuir seu medo, ou o dos seus filhos, de andar nas ruas. Nem se fala então dos omissos por completo. Aqueles que pensam que é um mundo distante, mas que ta bem ali do lado. O seu menosprezo é o desejo de esconder sua própria fragilidade e do mundo em que você vive. Num ato desesperado de viver em um “faz de conta” que não existe. Essa é a distância que me preocupa.

21 dez

Bom final de ano a todos!
O Duplo Nó voltará na primeira semana de janeiro, assim como os atendimentos clínicos.
para mais informações:

atendimento em são paulo

Mãe cujos filhos são peixes

14 dez

O título se refere a etimologia da palavra Iemanjá. O nome é muito conhecido mesmo para quem não faz parte, ou pouco sabe sobre o candomblé. Apesar de cada nação africana cultuar apenas um orixá, no Brasil, o candomblé terminou se tornando uma religião politeísta. Como os escravos vinham de diversas regiões africanas e se juntavam na mesma senzala, a junção dos cultos terminou se tornando um fenômeno afro-brasileiro.

Iemanjá é apenas um deles e talvez uma das mais importantes. A rainha do mar, segundo os mitos dos orixás, nasceu junto com os oceanos. Encantada com a terra, tratou de enfeita-la com cachoeiras e cascatas. Entregou a cada um de seus filhos uma parte da natureza. Como rainha das águas, Iemanjá é aquela que fertiliza a terra.

Para o candomblé, Iemanjá representa a deusa mãe. Arquétipo daquele que acolhe, sustenta, nutre, a elevação espiritual além da razão e, em fim, aquela que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento. Em outros contextos ela poderia ser considerada a Nossa Senhora ou a Deusa Perséfone e ainda a Iara, deusa do mar Tupi.

Ela é o símbolo da crença de um determinado grupo que encontrou através da construção desse mito uma forma de se orientar no mundo e explicar aquilo que naquele momento era inexplicável. Um famoso antropólgo, Claude Lévi-Strauss, se dedicou, por muito tempo, a estudar rituais e crenças nas mais variadas culturas. Falando muito selvagemente sobre seu trabalho, Lévi-Strauss concluiu que não importa a distância entre os povos, sempre haveria algo em comum em seus rituais e crenças. Algum ponto que poderia ser identificável em todas elas e a partir daí definiu sua teoria estruturalista.

A partir dela, ele defendia que independentemente da raça, clima ou religião, a humanidade em geral, seria regida por uma mesma estrutura mental. Pela mesma linha de pensamento Jung definiu sua teoria dos arquétipos que seriam figuras eternizadas e comuns em todos os povos, através de um inconsciente coletivo. Algo mais ou menos como um conjunto de idéias herdadas por nossos mais antigos ancestrais e revividas por outras gerações.

Assim como as outras deusas, Iemanjá também tinha seus momentos de ira com os homens. Diz a lenda, que por conta da sujeira jogada nos mares e do mau comportamento dos homens em suas águas ela inventou as ondas. Elas levariam para longe, aquilo que não presta, e dependendo da sua intensidade mostrava o tamanho de sua raiva. A partir dessa representação os homens iam moldando seu comportamento para com a natureza, desvendando seus limites e se relacionando com ela.

Outra características dos mitos dedicados as deusas é o poder de sedução. O símbolo da mulher é ao mesmo tempo aquele que doa e aquele que tira, aquele que protege e o que oferece tentação.

Dona de rara beleza, de acordo com a mitologia africana, e cheia de apetite extravagante. Iemanjá costumava seduzir pescadores e leva-los para o fundo do mar. Como meros humanos, terminavam se afogando e eram devolvidos a terra sem vida.

Noivas, mães ou esposas costumavam levar ao mar muitos presentes para que a deusa devolvesse seus homens com vida, mantivessem o mar seguro para as navegações e com muitos peixes para alimentar as comunidades. Dessa forma essas pessoas se relacionavam com os oceanos, ao invés de tentar controlar a natureza tentavam através de oferendas viver em harmonia com ela.

A figura da mulher também representa essa identidade carnal em outras crenças. Sua sexualidade muitas vezes, era voltada para o mal, a luxuria feminina atiçava os homens provocando tentações que os levavam ao pecado. Talvez como forma de instituir uma cultura monogâmica e o tabu do incesto. A mulher possível de se relacionar sexualmente e que oferece menos perigos seriam aquelas com a qual se planeja constituir uma família.

A figura ou a idéia de Iemanjá tem um papel importantíssimo na constituição da organização social dos devotos do candomblé. Nos finais de ano, além da Pop figura do Papai Noel, é muito comum, principalmente em cidades litorâneas, presenciar tradicionais oferendas a rainha do mar. São barquinhos floridos, velas, colares etc. Como forma de agradecimento ou pedidos de uma convivência leve e frutífera para quem vive junto ao mar.

Em uma época onde muito se pensa no consumo, pouco se lembra das relações, menos ainda resta para refletir sobre o contato com a natureza. A presença do culto a Iemanjá retoma a idéia do quanto somos dependentes e frágeis diante da natureza, do respeito e do carinho que devemos por tudo o que ela nos oferece e pelo nada que somos diante de sua grandeza. Parece que ainda temos muito o que aprender com os mitos!

Leia mais em: O Mito dos Orixás de Reginaldo Prandi

Quanto mais se vive, melhor se morre

2 dez

A expectativa de vida no Brasil aumentou em 11 anos. Isso significa que estamos mais saudáveis, que as tecnologias e estudos sobre a saúde estão evoluindo e favorecendo que o homem desfrute de muito mais tempo no planeta. Algumas preocupações filosóficas rodeiam esse tema, aumento populacional, obviamente, e outra questão um pouco mais abstrata: a maneira com que o homem dialoga com a natureza e a forma com que ele se relaciona com o desgaste natural de seu corpo é saudável?

Eu não me considero ainda madura o suficiente para expor uma opinião consistente sobre o assunto. No entanto, já vivenciei a passagem da velhice até a morte com um parente próximo, por mais descrente, em termos místicos e religiosos, que você seja existe uma compaixão, criam-se dúvidas e questionamentos sobre a vida e a morte e em fim o luto.

Faz parte de todo um ritual de passagem, que exige muita preparação e amadurecimento de todas as partes. Já ouvi milhares de coisas lindas sobre a vida. De como, o fato de cada um de nós estarmos vivos, faz parte de uma coincidência estupidamente, gigantescamente laboriosa. Matéria se explode, uma via láctea se constitui, nosso planeta fica exatamente em um lugar que possibilita a existência de vida, uma sociedade inteligente se constitui seus pais se conhecem, se relacionam e você nasce. Parece loucura, mas é um fato, é um milagre ou seja lá como você nomeia isso.

A vida é uma coisa extraordinária. Pode ser que por isso, pensar em morte ou refletir sobre ela seja tão difícil para nós. Mas ela existe tanto quanto a vida e faz parte de uma ferida narcísica que carregamos sempre. Sabemos que vamos morrer e nada podemos fazer sobre isso. Tanto quanto admiro as pessoas que se encantam e poetizam a vida, terminei admirando igualmente aquelas que aceitam seu lugar de mortais. Não tem nada a ver com se entregar, mas de encarar uma realidade de maneira leve que só quem amou a vida pode fazer.

Uma elas foi Carl Sagan, cientista e astrônomo americano, mais conhecido popularmente por ter apresentado o programa de televisão Cosmos na década de 80. Em seu último livro: Bilhões e Bilhões (Ed. Companhia das Letras), ele reúne diversos artigos dos mais variados temas sobre o planeta, o Universo, o ser humano coletivo e individual etc. Em fim, no ultimo capítulo, que ele escreve no hopital, enquanto luta contra uma doença, Sagan faz uma reflexão maravilhosa sobre a vida e a morte.

A outra foi Sigmund Freud. Essa semana caiu em minhas mãos a sua ultima entrevista. Não sabia, mas ele morreu em sua casa de campo, o único bem que lhe restou após a Segunda Guerra. Como judeu perdeu muita coisa para a Alemanha nazista e nunca foi reconhecido em seu país. Terminou sua vida no mesmo lugar em que nasceu.

Ambos falam da morte sem ressentimentos e com uma tranqüilidade em suas falas que só quem viveu plenamente pode ter essa postura diante desse fato inevitável. Segue o link (http://www.sbpsp.org.br/default.asp?link=freud) para a entrevista, o livro quem tiver interesse vai ter que da um pulinho na livraria.

Você se reconhece no espelho?

25 nov

“O Mundo Infelizmente é Real. Eu infelizmente sou Borges” (J.L Borges, 1946)

Atire a primeira pedra aquele que não guarda um mistério sobre si mesmo. Alguma coisa que até mesmo sozinhos em frente ao espelho conseguimos dizer olhando nos próprios olhos, já tentou ao menos? Atitudes ou desejos que, algumas vezes, temos vergonha de assumir num espaço entre quatro paredes diante da presença de nossa consciência.

Não precisa necessariamente ser uma coisa ruim, algo obscuro ou condenável pelas leis éticas da sociedade. Pode ser simplesmente um desejo de jogar tudo para o alto e assumir uma vontade de não ser aquilo que esperam que a gente seja. Por mais que se viva minimamente saudável, trabalhando, se relacionando e tentando ser feliz, na medida do possível, algumas pessoas estão sempre se queixando de que falta algo, de um vazio ou um desejo congelado.

Ao negar aquilo que realmente somos e assumir um papel idealizado para nós, sem perceber, acaba-se levando uma vida frustrada. Instigada pela busca de alguma coisa que não consegue nomear, exatamente porque não existe tal coisa. Ao negar a si próprio o indivíduo não se realiza ele apenas procurar agradar a alguém.

Antes mesmo de nascer, já somos um projeto na cabeça de nossos pais. Mesmo aqueles filhos concebidos sem planejamento, um dia foram fantasiados pelas suas mães, nem que fosse nas brincadeirinhas de bonecas. Os pais fazem planos, escolhem um nome, imaginam um futuro maravilhoso. Alguns menos outros muito mais.

É comum que se crie expectativas para os filhos, mas pode ser arriscado traçar um plano de vida para eles baseado na suas concepções. Apesar de ser filho, ele se tornará uma pessoa, com individualidade e desejo próprio. O que muitas vezes acontece, é que no momento em que as individualidades entre pais e filhos afloram, os primeiros tendem a ser frustrar, porque fizeram daquela criança um projeto seu, ao invés de educa-la sem expectativas, constituindo uma base de valores para que essa pessoa possa viver para o mundo.
Esse é o primeiro grande desafio, se diferenciar de nossos pais e nos constituir com personalidade e desejos que não incluem aqueles que eles idealizaram para nós. Isso aparece ainda mais caricato na adolescência, a fase onde fazemos de tudo para desagradar a eles, onde aparecem os primeiros conflitos e as atitudes rebeldes.

Até com os animais existe uma rejeição em torno das diferenças. Me lembrei de um ótimo documentário chamado: Os camelos também choram. O bebê camelo albino é rejeitado pela mãe e sofre para poder mamar em seis seios, porém o final é surpreendente. Por mais difícil e conflituoso que seja se diferenciar do outro, frustrar projetos e idealizações, no fim das contas a tempestade pode ser apenas uma nuvem passageira. Não vou contar o final para não estragar a surpresa, mas o filme, pode valer como uma grande lição, inclusive sobre como a arte tem algo de metafísico que envolve nossas emoções.

Um caminho de escolhas próprias e conscientes pode parecer tortuoso. Principalmente em uma sociedade que não privilegia a individualidade. Depois da família o sujeito se depara com as instituições sociais que valorizam a categorização das pessoas, em fumante ou não fumantes, depressivos ou bipolares, homo ou heterosexuais e assim por diante.

Muitas vezes me espanta ler nas revistas coisas do tipo: como ser bem sucedido na empresa, ou 10 passos para conhecer a pessoa ideal e ainda mil e uma maneiras de ser feliz morando em uma ilha deserta. Como se tudo fosse simples assim e como ser feliz ou ser bem sucedido na empresa fosse a mesma coisa para todas as pessoas.

Vejo muita gente dando as tripas e o coração para atender as infinitas regras de estética, saúde e trabalho. Se sentindo culpadas porque não são bem sucedidas (e algumas vezes são), felizes ou estão sozinhas sem nem se perguntar o que realmente para elas é ser sucedido, é estar feliz e o que é estar com alguém.

De certo modo todo mundo é meio alienado nesse sentido. Seja porque tem vergonha de ser quem realmente é, ou porque nem sabe que pode ser ele mesmo, uns tentam mas falta coragem e outros insistem porque são teimosos mesmo. Para os que se aventuram, aquele caminho tortuoso pode ser parte da imaginação. Assim como viver uma fantasia pode parecer melhor que viver a realidade, ela pode, como disse Borges, infelizmente não ser ideal porque não é fantasia e você pode infelizmente ser você. Mas ao menos você não será um projeto e nem nada inalcansável, apenas você.

Quem somos depende mais de nossos desejos do que do nosso corpo

21 nov

Essa semana coincidentemente transitei entrei a temática de gênero e identidade. Foram três, minto quatro filmes, acho que posso incluir A Pele que habito de Almodóvar e uma revista. Claro que a discussão em torno de feminino e masculino, o que é ser um homem e o que é ser uma mulher transita pelos calhamaços hipotéticos de teses e mais teses e mesas redondas que se fecham nos corredores da academia já há algum tempo.

Para muitos pensadores, das ciências humanas, a questão da divisão de gênero a partir de uma teoria biológica e cartesiana já há muito foi resolvida. Não dá para definir um homem ou uma mulher a partir daquilo que eles tem entre suas pernas. Muito menos propor que tipo de atitude eles devem ter em relação a vida pelo órgão sexual que carregam. Ser homem ou mulher é muito mais complexo do que se pensava, ainda bem!

Maria Luíza Heilborn, historiadora e antropológa, em um texto de 1992, abre um debate sobre o que é, o que significa gênero. Para ela são visões que dependem do meio social, histórico e cultural que a pessoa vive, ela diz: “pode se multifacetar em prismas variados de análise. Gênero refere-se, de um lado, a uma dimensão crucial da noção de pessoa, aquilo que do ponto de vista de cada cultura o humano possui de qualidades sexuadas. Assim, representa a introdução da diferença em uma instância que lhe é logicamente anterior: a pessoa, tal como concebida em um esquema simbólico particular”.

Ai entra aquela velha discussão mas é a genética ou o ambiente que faz a pessoa constituir uma identidade, na minha opinião provavelmente nem um nem outro, ambos. A complexidade da estruturação de uma personalidade, de sua identidade sexual e seus comportamentos deve ser uma rede extremamente complexa, impossível de ser definida de maneira simples e por via única.

Como vinha dizendo, assisti 4 filmes essa semana que me fizeram pensar a respeito e de épocas completamente diferentes. Glen ou Glenda é um clássico cult dos anos 50, fala dos fetichistas, homens que se vestem de mulher e travestismo. Nessa década ambos classificados como perversões. Pessoas com esses “sintomas” algumas vezes eram internadas em sanatórios. Devia existir os guetos onde elas eram bem aceitas, sempre existiu, mesmo que fosse camuflado.

Não foi pela temática que o filme ficou conhecido como excêntrico, mas sim pela fama posterior do diretor Ed Wood, por montar filmes com baixíssimo orçamento. Onde eu quero chegar é que essas questões e esses comportamentos existem a muito tempo e devem ser tão antigos quanto é o ser humano, antes de Heilborn, muitos outros pensadores questionavam as definições de gênero. Uns menos, outros mais conhecidos como a famosíssima Simone de Beauvoir.

Graças a existência de pessoas que questionam e não aceitam respostas prontas, que se debruçam em pilhas e pilhas de teses que a gente acha que nunca saem de dentro das paredes da academia, muitas das respostas que achava-mos corretas caem por terra e ao poucos, vão se infiltrando no senso comum. Fiquei muito feliz com a última edição da revista Trip, eles tiveram a ousadia e a competência de falar sobre o tema, trazendo diversas visões sobre identidade. No momento onde a luta sobre direitos de amar quem você quiser amar toma conta do espaço político e social, com direito a polêmicas religiosas e de tolerância, a revista mostra que a coisa vai muito mais além da concretude.

Não existe gay ou hétero. Existem gays e héteros, ou seja, existem pessoas com escolhas e desejos que vai muito mais além do tipo de pessoa que ela decide se relacionar. A sociedade em que a gente vive, superficial e imediatista, favorece a rotulação e taxação das pessoas sem que exista um aprofundamento sobre sua personalidade ou valores para que formemos uma opinião sobre ela.

Em A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, o processo de transformação por que passa um dos personagens nos leva a pensar, e o personagem de Antonio Bandeiras também, que a essência daquela pessoa também teria mudado. Muitas vezes caímos no erro de sermos persuadidos pela imagem. Não vem ao caso discutir o filme, quem sabe num próximo texto, mas aquele personagem não escolheu viver naquele corpo, assim como os transexuais também não.

E isso precisa ser discutido porque acontece muito. Os outros dois filmes são o Tom Boy e Minha Vida em cor de rosa. Ambos contam a historia de uma menina e um menino, respectivamente, que não se sentem confortáveis em desempenhar o papel social definido para seu gênero. Ela gostaria de ser um menino e se comporta como um, é assim que ela se sente bem, o garotinho a mesma coisa. A todo momento se questionam porque não podem ser do jeito que querem ser.

O fato dos personagens serem crianças torna a discussão ainda mais interessante, pois eles levantam questões que para os adultos estão resolvidas, mas nem sabem ao certo porque tem que ser assim. Fico feliz pelo fato das famílias, mesmo tomando sustos e cometendo erros, tentam entender os seus filhos e terminam comprando suas brigas. Vamos torcer para o dia em que pessoas sejam apenas pessoas.

Papa-Figo para embaixador do Halloween no Brasil

21 out


Não sei o significado da palavra Halloween ou o motivo para o uso das abóboras iluminadas. Mas, dando um google, dá para saber que tem alguma coisa a ver com a cultura de povos celtas, posteriormente incorporada pela igreja católica, levada pelos irlandeses para os Estados Unidos. Daí, os vários símbolos, como as bruxas, doces, travessuras e abóboras, cada um foi, aos poucos, sendo incorporado a essa “comemoração dos dias dos mortos” ou “dia das bruxas” por algum motivo, seja ele cultural ou comercial.

Me peguei pensando, sobre como o Halloween finalmente se estabeleceu como uma data comemorativa no Brasil. Particularmente, minhas associações a esse evento, são a série de filmes de terror americano que leva o mesmo nome ou festas a fantasia. Finalmente o ritual dos doces, as travessuras, que certamente devem ter um sentido histórico e cultural, assim como todos os outros elementos que permanecem obscurecidos pela superficialidade dos eventos e do comércio.

O festejo aos mortos, a brincadeira com o oculto e o misterioso faz parte da nossa curiosidade e constitui muitos de nossos mitos e lendas. Por isso, sinto falta de uma mascara do Papa-Figo nas vitrines de fantasias, ou homem do saco como também era conhecido. No meu imaginário e fantasias infantis, ele era um velho fedorento e corcunda, que andava carregando um saco branco de náilon pesado. Provavelmente porque já estava cheio de criancinhas dentro.

Perdi as contas de quantas vezes exitei ultrapassar os limites dos dois quarteirões, aos quais me eram permitidos brincar, com medo de ser levada pelo Papa-figo. Todo mito ou lenda tem seu fim, nesse caso, os adultos faziam uso estratégico para manter os filhos perto de casa, e funcionava. O medo é um dispositivo para evitar que tenha-mos contato com o perigo e as lendas urbanas de nossa infância, contadas por nossas avós e recontadas por nossas mães era a forma comum de erigir fronteiras para as crianças que brincavam na rua.

O mais genial de tudo era que o “Papa-figo” fazia suas aparições. Claro! Sempre tinha o homem do saco, hoje eu sei que era o mendigo que catava lixo perto de casa. Na época era o coletor de criancinhas, que de longe fazia nosso rosto gelar e salve-se quem puder, era aquela correria. Quem não tem uma história do homem do saco? Quem provavelmente só brincou no play.

Gilberto Freire, em seu livro: Assombrações do Recife Velho, faz um estudo antropológico sobre essas lendas urbanas da cidade, que muitas vezes são do pais, vale a pena dar uma olhada, é interessante e divertido. O Papa-figo está lá. Dizem as más línguas que um homem de família rica ficou adoentado e médico nenhum da região dava conta. O homem suava frio e em noite de lua cheia ficava transtornado.

Médico nenhum dando jeito foram procurar o preto velho curandeiro. Na lata ele disse: Lobisomem! A família, de muitas posses, faria qualquer coisa para curar o patriarca. A receita era comer um fígado de criança por noite, só assim ele voltaria ao normal. Como ele, enfermo, não podia ir atrás dos meninos e meninas e ninguém da família queria se comprometer, contrataram o velho curandeiro para fazer o serviço. Durante alguns meses ele teria vagado pela cidade do Recife com um saco levando uma criança por dia para alimentar o barão com seus fígados.

Hoje não se festeja o Papa-figo, o velho caçador de criancinhas perdeu lugar para a bruxa de vassouras, zumbis, vampiros, múmias e cabeças de abóboras. Eles tem seus méritos no hall das assombrações, mas estão lá longe, que nem o papai Noel. Só entramos em contato com eles nos filmes ou nos livros Já o Papa-Figo, deve estar por aí, vagando com o seu singelo saquinho sem a sofisticação da vassoura voadora, tumba egípcia ou caixão luxuoso para passar a noite, mas é o nosso velho homem do saco.

Link para Artigo

14 out

http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277916893_ARQUIVO_liliafazendogenero2010.pdf

Duplo Nó: O discurso médico moralizador e a culpabilização das mulheres nas publicidades de revistas femininas (1930-1950)